sábado, 20 de abril de 2013

A Máquina do Mundo


A Máquina do Mundo

Carlos Drummond de Andrade



E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa, 
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos 
que era pausado e seco; e aves pairassem 
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo."

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.



Este poema foi escolhido como o melhor poema brasileiro de todos os tempos por um grupo significativo de escritores e críticos, a pedido do caderno "MAIS" (edição de 02-01-2000), publicado aos domingos pelo jornal "Folha de São Paulo". Publicado originalmente no livro "Claro Enigma", o texto acima foi extraído do livro "Nova Reunião", José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1985, pág. 300.


Conheça o autor e sua obra visitando "Biografias".

 

sexta-feira, 19 de abril de 2013

SINTO VERGONHA DE MIM - rui barbosa


RUY BARBOSA

Sinto vergonha de mim
por ter sido educador de parte deste povo,
por ter batalhado sempre pela justiça,
por compactuar com a honestidade,
por primar pela verdade
e por ver este povo já chamado varonil
enveredar pelo caminho da desonra.

Sinto vergonha de mim
por ter feito parte de uma era
que lutou pela democracia,
pela liberdade de ser
e ter que entregar aos meus filhos,
simples e abominavelmente,
a derrota das virtudes pelos vícios,
a ausência da sensatez
no julgamento da verdade,
a negligência com a família,
célula-Mater da sociedade,
a demasiada preocupação
com o 'eu' feliz a qualquer custo,
buscando a tal 'felicidade'
em caminhos eivados de desrespeito
para com o seu próximo.

Tenho vergonha de mim
pela passividade em ouvir,
sem despejar meu verbo,
a tantas desculpas ditadas
pelo orgulho e vaidade,
a tanta falta de humildade
para reconhecer um erro cometido,
a tantos 'floreios' para justificar
actos criminosos,
a tanta relutância
em esquecer a antiga posição
de sempre 'contestar',
voltar atrás
e mudar o futuro.

Tenho vergonha de mim
pois faço parte de um povo que não reconheço,
enveredando por caminhos
que não quero percorrer...

Tenho vergonha da minha impotência,
da minha falta de garra,
das minhas desilusões
e do meu cansaço.

Não tenho para onde ir
pois amo este meu chão,
vibro ao ouvir o meu Hino

e jamais usei a minha Bandeira
para enxugar o meu suor
ou enrolar o meu corpo
na pecaminosa manifestação de nacionalidade.

Ao lado da vergonha de mim,
tenho tanta pena de ti,
povo deste mundo!

'De tanto ver triunfar as nulidades,
de tanto ver prosperar a desonra,
de tanto ver crescer a injustiça,
de tanto ver agigantarem-se os poderes
nas mãos dos maus,
o homem chega a desanimar da virtude,
A rir-se da honra,
a ter vergonha de ser honesto'.

terça-feira, 2 de abril de 2013

ESTATUTO DO HOMEM

       ESTATUTO DO HOMEM 
       (Ato Institucional Permanente) 
      
                                              A Carlos Heitor Cony 
      
        Artigo I 
      
       Fica decretado que agora vale a verdade. 
       agora vale a vida, 
       e de mãos dadas, 
       marcharemos todos pela vida verdadeira. 
      
      
       Artigo II

       Fica decretado que todos os dias da semana, 
       inclusive as terças-feiras mais cinzentas, 
       têm direito a converter-se em manhãs de domingo. 
      
      
       Artigo III 
      
       Fica decretado que, a partir deste instante, 
       haverá girassóis em todas as janelas, 
       que os girassóis terão direito 
       a abrir-se dentro da sombra; 
       e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, 
       abertas para o verde onde cresce a esperança. 
      
      
       Artigo IV 
      
       Fica decretado que o homem 
       não precisará nunca mais 
       duvidar do homem. 
       Que o homem confiará no homem 
       como a palmeira confia no vento, 
       como o vento confia no ar, 
       como o ar confia no campo azul do céu.

      
               Parágrafo único: 
      
               O homem, confiará no homem 
               como um menino confia em outro menino. 
      
      
       Artigo V 
      
       Fica decretado que os homens 
       estão livres do jugo da mentira. 
       Nunca mais será preciso usar 
       a couraça do silêncio 
       nem a armadura de palavras. 
       O homem se sentará à mesa 
       com seu olhar limpo 
       porque a verdade passará a ser servida 
       antes da sobremesa. 
      
      
       Artigo VI 
      
       Fica estabelecida, durante dez séculos, 
       a prática sonhada pelo profeta Isaías, 
       e o lobo e o cordeiro pastarão juntos 
       e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora. 
      
      
       Artigo VII

       Por decreto irrevogável fica estabelecido 
       o reinado permanente da justiça e da claridade, 
       e a alegria será uma bandeira generosa 
       para sempre desfraldada na alma do povo. 
      
      
       Artigo VIII 
      
       Fica decretado que a maior dor 
       sempre foi e será sempre 
       não poder dar-se amor a quem se ama 
       e saber que é a água 
       que dá à planta o milagre da flor. 
      
      
       Artigo IX

       Fica permitido que o pão de cada dia 
       tenha no homem o sinal de seu suor. 
       Mas que sobretudo tenha 
       sempre o quente sabor da ternura. 
      
      
       Artigo X

       Fica permitido a qualquer pessoa, 
       qualquer hora da vida, 
       o uso do traje branco. 
      
      
       Artigo XI 
      
       Fica decretado, por definição, 
       que o homem é um animal que ama 
       e que por isso é belo, 
       muito mais belo que a estrela da manhã. 
      
      
       Artigo XII 
      
       Decreta-se que nada será obrigado 
       nem proibido, 
       tudo será permitido, 
       inclusive brincar com os rinocerontes 
       e caminhar pelas tardes 
       com uma imensa begônia na lapela.

      
               Parágrafo único: 
      
               Só uma coisa fica proibida: 
               amar sem amor. 
      
      
       Artigo XIII 
      
       Fica decretado que o dinheiro 
       não poderá nunca mais comprar 
       o sol das manhãs vindouras. 
       Expulso do grande baú do medo, 
       o dinheiro se transformará em uma espada fraternal 
       para defender o direito de cantar 
       e a festa do dia que chegou. 
      
      
       Artigo Final. 
      
       Fica proibido o uso da palavra liberdade, 
       a qual será suprimida dos dicionários 
       e do pântano enganoso das bocas. 
       A partir deste instante 
       a liberdade será algo vivo e transparente 
       como um fogo ou um rio, 
       e a sua morada será sempre 
       o coração do homem.

      Thiago de Mello 
    Santiago do Chile, abril de 1964

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Criação do Homem

"No início já havia tudo.
Mas Deus era cego
e, perante tanto tudo,
o que ele viu foi o Nada.
Deus tocou a água
e acreditou ter criado o oceano.
Tocou o chão
e pensou que a terra nascia sob os seus pés.
E quando a si mesmo se tocou
ele se achou o centro do Universo.
E se julgou divino.
Estava criado o Homem.
"
 —  Mia Couto