Para a maioria dos homens, os direitos aparecem como o que eles podem fazer, cobrar, exigir. Têm das situações jurídicas em que se acham, ou em que se acha alguém, impressões de projeção do eu. O mundo é organizado de tal forma que esses direitos, bilhões de direitos numa só cidade – a propriedade dos prédios, dos móveis, das jóias, as notas promissórias, as ações, o ordenado, a entrada dos teatros e cinemas – se lançam, se cruzam, sem que nunca se choquem, ou se firam. Dificilmente se compreende que haja embaraços ao exercício deles, entre si. Por que haviam de não coexistir, confortavelmente, sem se tocarem, o meu direito de autor e o direito dos outros às suas casas, ao seu quintal, à eletricidade que nos serve? Por aí se chega à concepção absolutista, atômica, dos direitos subjetivos. Nenhum depende do outro; nem ofende o outro. Movem-se, convivem, sem nunca se encontrarem. Ainda dos direitos dos condôminos, dos compossuidores, dos sócios, tem-se a idéia pluralística, que não chega a ser, sequer, molecular. Linhas. Não mais do que linhas. E sem que uma atravesse a outra, ou a corte. O egoísmo humano encontra em tal noção da vida jurídica a imagem que mais lhe agrada. O indivíduo como que se libera nesse infinito de órbitas, de trajetórias coerentes e inflexíveis. Assim seria o mundo jurídico. Aqui e ali, uma ou outra limitação dos direitos, mas feita pela lei. Os juristas logo a inserem nas definições, nos efeitos, nas modalidades. E os direitos como que se retraem, para que se não tenha a impressão da restrição, do corte.
Mas o mundo jurídico não é assim. Nunca foi. Os direitos topam uns nos outros. Cruzam-se. Molestam-se. Têm crises de lutas e de hostilidades. Exercendo o meu direito, posso lesar a outro, ainda se não saio do meu direito, isto é, da linha imaginária que é o meu direito (...).
O estudo do abuso do direito é a pesquisa dos encontros, dos ferimentos, que os direitos se fazem. Se pudessem ser exercidos sem outros limites que os da lei escrita, com indiferença, se não desprezo, da missão social das relações jurídicas, os absolutistas teriam razão. Mas, a despeito da intransigência deles, fruto da crença a que se aludiu, a vida sempre obrigou a que os direitos se adaptassem entre si, no plano do exercício. Conceptualmente, os seus limites, os seus contornos, são os que a lei dá, como que põe objetos na mesma maleta ou no mesmo saco. Na realidade, quer dizer – quando se lançam na vida, quando se exercitam – têm de coexistir, têm de conformar-se uns com os outros.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado – Direito das Obrigações.Tomo LIII. Rio de Janeiro: Borsói, 1966, p.66-67.