sábado, 4 de setembro de 2010

Mudança interior para mudar o mundo (Boaventura de Sousa Santos)


Boaventura de Sousa Santos:
Obrigado por me dar a oportunidade de fazê-lo, porque eu penso que estas transformações pelas quais nós lutamos, elas têm que passar por essa transformação interior. Eu costumo dizer que não faz nenhum sentido criarmos mapas emancipatórios se não tivermos viajantes que os vão ler, que os vão usar. E, exatamente, a subjetividade da modernidade pouco a pouco desinteressou-se da emancipação, porque a própria criação da subjetividade é inconformista, rebelde, digamos assim. Ela foi, de alguma maneira, através de muitos sistemas, desde a sociedade de consumo, do sistema educativo e outros grandes instrumentos da modernidade, esse inconformismo que passou pela banalização do horror e da violência que nós assistimos todos os dias nos próprios meios de comunicação social - ou "nos mídia", como dizeis aqui... É evidente que o que nós temos realmente, hoje, como grande tarefa, penso eu, é criar outra vez o inconformismo. É muito importante que não nos deixemos banalizar. Portanto, há um aspecto de pedagogia muito forte. Aliás, um dos atrativos de Fórum, e a razão por que ele produz esse encantamento, é porque ele é uma maciça manifestação de pedagogia, onde todos aprendem sem que ninguém ensine. E exatamente isso - que vem até da melhor tradição do Paulo Freire [(1921-1997), grande educador brasileiro, que se preocupava com uma educação conscientizadora e libertadora] - é uma pedagogia nova, é onde muitas pessoas... Por exemplo, até com uma pequena idéia simples - por exemplo, se nós, ao invés de construirmos um submarino, dedicássemos aquele dinheiro do submarino, quantas casas de habitação social poderíamos construir na América Latina? E as pessoas ficam absolutamente espantadas. É esta pedagogia, digamos assim, que tem que ser feita e essa, sim, que vai criar as tais subjetividades que se movem por causas e não por interesses. Veja que, mesmo quando se [...] todas as sociedades que lutaram pelas grandes transformações sociais... Houve realmente, por vezes, muita divisão de fracionalismo e etc. Por quê? Porque essas forças lutavam por causas e não apenas por interesses. A direita sempre se moveu por interesses e por isso é que é mais fácil ela pôr-se de acordo do que a esquerda, digamos assim. Ora, é no mundo dos princípios que nós hoje devemos pôr as nossas complacências. Sobretudo, por quê? Porque os princípios não têm fim, ou seja, são princípios que nós, durante muito tempo, na modernidade ocidental, pensamos que eram esses os únicos que existiam e esses eram os únicos valores; e, de fato, nos equivocamos completamente. Com base nesses princípios universais muita gente foi liqüidada, muitos dos povos indígenas foram liqüidados. Ora, hoje há, por um lado, um apelo a esses princípios, que são, no fundo, aqueles que podem mover a partir de dentro das pessoas, por ter que haver uma relação. E eu tenho discutido isso muito com militantes e com meu próprio trabalho dos direitos humanos: é que não basta ter uma teoria dos direitos humanos, ela tem que ser uma relação que começa aqui dentro do nosso corpo, para que a pessoa possa sujeitar-se aos riscos que normalmente essas lutas envolvem. Eu terminei recentemente um projeto na Colômbia e durante quatro anos estive a fazer esse projeto, pois entre cinco e dez - por não sabermos todos os casos - dos meus melhores amigos foram assassinados, eram lutadores ativistas dos direitos humanos. Portanto, a subjetividade tem que ser mudada a partir de dentro. Mas como é que se cria essa subjetividade? Não pode ser à imagem e semelhança do Ocidente. Porque, veja, porque nós, a idéia de pessoa... mesmo a Igreja, muitas vezes, deixou que a pessoa fosse absorvida e canibalizada pela idéia do individualismo. Não pode ser. E é até uma grande lição dos gandhianos [relacionados com as idéias do Mahatma Gandhi (1869-1948), idealizador do moderno Estado indiano e que pregou a pressão por mudanças políticas de formas não-violentas]:

a grande lição das culturas orientais é exatamente que a pessoa tem não só direitos, mas também deveres. Ela está em harmonia ou em desarmonia, não apenas consigo, mas com seus antepassados, com a sua família, com o cosmos e é essa visão que nos pode dar, digamos assim, um outro interesse no mundo. Porque só quando o que acontece no mundo, essa desigualdade social [de] que falava, for algo que nos diz respeito - porque nós somos também vítimas dessa desigualdade e não podemos ser parasitas dela -, só nesse momento é que nós podemos ter essa transformação. E daí que tem toda a razão e nós temos que encontrar formas de pedagogia onde se treine as subjetividades rebeldes, as subjetividades inconformistas. O Fórum é uma delas, muitas outras terão que ser criadas.

Nenhum comentário: